- E se eu te encontrasse na porta dum desses paraísos com entrada individual, cê me deixava?
- Eu nem passo da porta. A gente não viveu de paraísos antes, não tem porque viver agora.
- Mas você não quer largar mão dessas coisas todas que só dão dor de cabeça e economizar na conta da farmácia?
- Eu não largo mão de você. Nem da confusão dos seus olhos.
- Meus olhos?
- Seus.
- O que têm eles?
- São azuis.
- Verdes…
- Você não tá vendo a luz batendo neles agora e nem adianta dizer que
eles são estáticos. A cor muda, o mundo muda. Só nós dois é que tínhamos
lá uma breve inclinação pra inércia…
- E isso é ruim?
- Seus olhos?
- Não. A gente.
- Não é ruim porque a gente se entendeu num inferno. A gente não
conheceu paraíso por conta de tudo um pouco. A lavanderia do
apartamento, por exemplo, era pequena demais. A gente podia ter mudado
de lá pra cá.
- Mas a gente mudou…
- Eu sei. Demais até.
- E você queria ficar perto do trabalho pra ir de bicicleta. Por isso a
gente nunca trocou de apartamento. Você me atropelou um dia desses e
ainda me chamou de pedestre estúpido, lembra?.
- A gente já
começou com ódio. Eu teria socado a sua cara se você não tivesse deixado
cair aquele livro do Bukowski. A gente tinha alguma coisa em comum e eu
considerei o incidente um esbarrão.
- O meu joelho ficou esfolado e você era bonito demais pra eu ficar com raiva. Lembro que choveu mais tarde.
- E você me beijou. De barba mesmo. Nem deu tempo de tirar pra me mostrar mais apresentável. Mas gostei daquilo.
- Da barba ou do beijo?
- De você.
- Não me lembro direito, mas você mentiu sobre saber cozinhar. Eu
descobri as caixas de comida no dia seguinte. Acordei, fui tirar o seu
lixo e vi.
- E não me desmascarou no primeiro encontro por quê?
- Porque eu vi uns discos na sua estante e achei bacana o modo como
você guarda as suas coisas, embaladas em saquinhos transparentes pra não
pegarem pó. Vi o seu banheiro e o seu quarto arrumado e tudo aquilo
fazia parecer que você tinha um zelo gigante pelo o que preza.
- Você se apaixonou pela minha mania de organização?
- Não. Eu queria ser cuidado como aqueles discos. Não pra ficar na sua
estante, mas pra ser tocado, ouvido, sentido… E achei que você tinha me
olhado com tanta ternura quando me deu boa noite que eu me sentiria bem
ali. No seu espaço. Com o seu braço por cima e uma caneca de café. Eu
gosto de café quente e dos seus óculos quadradões. Refletem bem a sua
personalidade.
- Você gosta mais de mim do que os outros caras
que eu tenho conhecido. Eles gostam do meu rosto ou da minha tatuagem.
Gostam de uns papos sobre Dostoievski e Pushkin e leem umas coisas que
eu não leria nem por obrigação. Eles gostam da minha segurança na hora
de falar e do meu abraço forte. Mas acho que você foi o único que gostou
do meu rubor e dos meus jeitos.
- Eu gostei de você. Com medo,
mas gostei. Achei engraçado o seu rubor por eu ter te roubado um beijo
naquele dia. Mas logo depois você deitou comigo e a gente dormiu.
- Eu sempre mando os outros caras embora antes do amanhecer. E não jogo
o braço por cima deles. Eu nunca quis dormir com nenhum deles.
- E por que você tá me falando disso agora?
- Porque eu não desisto de você. Não ainda. A falta anda sozinha e eu
fico pensando demais numas coisas em que eu não deveria pensar sem você.
- O ogro se livrou da casca?
- Com você eu nunca tive casca. Eu fui com medo. Mas fui. E eu nunca
senti a confusão da cor dos olhos de mais ninguém. Até mudei a forma de
guardar os meus discos depois de você.
- Mudou? Achei que nunca fosse mudar. E que ia continuar guardando discos e pessoas na sua estante.
- Mudei. E comprei uns discos novos. Passa lá em casa pra ouvir um pouco deles. Tem café também.
- Mas você odeia café.
- Não se tiver você.
- Eu tenho medo. De parar de novo na sua estante. De arruinar a sua
coleção e os seus modos. De não conhecer mais as suas tatuagens e o seu
hábito de mascar chicletes o tempo todo. De ter que dormir sozinho – e
tá chovendo lá fora. Não sei se arrisco a solidão de um edredom a dois.
Eu tenho medo de quebrar os seus discos novos como da última vez.
- Pode deixar que eu tomo cuidado dessa vez.
- Com os discos?
- Não. Com você.
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